Um voluntário do melhor lugar do mundo: Barqueiro do Rio Cocó dedicou metade da vida pelo meio ambiente
por lucas casemiro
Foto: Governo do Estado
A confecção de carvão nas margens do Rio Cocó foi prática frequente há 26 anos. Foi para combater esse e outros tipos de crimes ambientais, como pesca predatória, exploração dos mangues e caça, que seu Araújo, 53, barqueiro e tenente da reserva da Polícia Militar, se aproximou do Rio, na época com 27 anos. Como terceiro sargento, comandava uma embarcação que navegava do trecho que vai da BR 116 ao Caça e Pesca, onde o Cocó deságua. Ele ajudou a fundar o Pelotão de Policiamento Ecológico da Polícia Militar em 30 de agosto de 1991, quando de perto do “melhor lugar do mundo” nunca mais saiu - ao menos emocionalmente. Vinte e seis anos depois, quando o Pelotão já não é mais Pelotão, mas Batalhão de Polícia Militar Ambiental (BPMA), seu Araújo tem muita disposição, diz, para continuar por muito tempo em contato com Deus - ou com a natureza, que segundo ele, são conceitos próximos.
Como quando teve de chegar mais cedo no trecho do Rio Cocó cortado pela ponte da Avenida Sebastião de Abreu, seu local de trabalho, para ajudar um casal de noivos a serem fotografados tendo as águas verdes do ambiente como plano de fundo. Tenente Araújo, como é conhecido na região, se desloca dez quilômetros do bairro onde mora, Parangaba, até o manancial, de domingo a domingo. Ele diz que já chegou no local às 5h, para fazer operação de manejo do Rio. “No passado, na época em que estava na ativa, já fiz patrulhamento à noite, de madrugada…”, recorda. No ensolarado domingo de 26 de novembro de 2017, porém, ele conta que chegou no Rio no horário de costume, às 7h.
- Durante esse tempo, como é que o senhor se sentiu? Pergunto, referindo-me ao período em que seu Araújo se manteve longe do Rio Cocó, de 2012 a 2015, por falta de condições de navegabilidade - o leito do Rio estava obstruído por troncos de árvores, aguapés e todo tipo de poluição. Sentiu muita falta de navegar no Rio?
- Muita falta.
- Por quê?
- Porque aqui dentro eu me sinto bem. Imagine, você mesmo pode responder. Não é bom estar aqui? Pois é. Estar em contato com o natural é estar próximo de Deus e eu gosto disso. Gosto de entrar aqui, sujar o pé de lama… Não tô aqui por necessidade, estou por opção, porque gosto de estar aqui. E contribuir com o meio ambiente como posso, né?
O jejum de três anos foi quebrado em 2014, quando Francisco de Assis Araújo Garcia, o seu Araújo, entrou para a reserva da Polícia Militar e voltou a trabalhar no Rio Cocó. Desde então, de segunda a sexta-feira, a partir das 7 horas, faz o manejo do Rio, coletando todo material flutuante ou que fica preso às suas margens para encaminhar ao lixão. Em um dos nossos primeiros contatos, numa manhã do dia 12 de novembro, ele mostra o material recolhido na semana.
- Todo dia a gente coleta lixo. Esses que vocês tão vendo em baixo da ponte. Quando junta cinco, seis sacos desse aí a gente liga pra administração do Parque e recolhe pra mandar pro lixão.
A conversa é interrompida por seu celular, que toca. Ele atende.
- Alô, bom dia! Estou aqui à disposição. Adulto 10, criança 5 (reais). [...] A cada 20 minutos, tendo no mínimo duas pessoas, a gente sai. 20 minutos. É. Pronto! Quatro adultos é 40, cada criança é 5. Cada adulto 10. Vem aqui, que a gente conversa. Aqui na Avenida Sebastião de Abreu, do lado da ponte de cimento.
Desliga. - Então é isso, diz, voltando-se novamente para mim.
Tenente Araújo tem uma parceria com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) para fazer tanto o manejo quanto desenvolver um trabalho de educação ambiental com as pessoas que visitam o Rio, tudo em troca de viver perto das águas que conhece tão bem.
Nas quartas-feiras, dia em que escolas públicas estaduais têm prioridade no agendamento dos passeios de barco, ele transporta os estudantes durante os 20 minutos de passeio, acompanhado por um monitor da Sema, que explica a legislação ambiental, fala sobre a história do Rio, informa sobre fauna e flora locais, e realiza outras atividades educativas. O próprio Tenente Araújo também faz isso.
- A função é essa, educação ambiental para que as pessoas conheçam o rio de dentro pra fora e ajudem a protegê-lo.
É com essa disposição para estar próximo do Rio que Seu Araújo faz passeios em qualquer dia da semana e feriados, bastando um agendamento prévio.
- Passo dois dias longe do Rio, já sinto saudade.
O meu chefe aqui é o Rio
Foto: Emanel Silva
No áudio acima, quem fala é Edimilson Alves da Silva, 67 anos. O auxiliar de barqueiro diz que conheceu Seu Araújo em 2010, quando o tenente foi à Marinha comandar a patrulha marítima para fazer uma inspeção por todo o Ceará. Edimilson ajudou como marinheiro, conduzindo o barco. “Desde essa vez que a gente se encontrou, a gente se entendeu e desde então tamo junto”, explica. Em outra oportunidade, o barqueiro endossa o que o amigo falou no áudio.
- Eu sou um voluntário, certo? O que eu arrecado do barco, é para a manutenção do barco.
Pergunto se existe algum incentivo monetário por parte da Sema.
- Eu não trabalho para A ou para B, eu trabalho para o Rio. O meu chefe aqui é o rio. - Responde.
Os dois amigos são aquaviários. Ele explica que a para desempenhar a função, a Marinha exige dois marinheiros, um de convés (ele próprio) e um de máquina, função do companheiro.
- Estava conversando com seu auxiliar e ele me falou do período antes de ele ser contratado. Ele disse que antes dele trabalhar aqui tinha um pessoal que ajudava na manutenção do barco e acabou não dando muito certo. O senhor pode contar essa história um pouco melhor?
Pela primeira vez desde que entrei em contato com Seu Araújo, como visitante despretensioso, uma pausa na conversa acontece. Parece que a pergunta calou fundo. Desviando o olhar para um lugar dentro de sua própria memória, ele abre um sorriso diferente. Do tronco de árvore cortado onde está sentado, se dirige ao auxiliar, que está de costas para nós:
- Ei! Como é a história aí?
Edmilson, que estava no trapiche terminando de ajeitar os antes chamativos coletes salva-vidas (hoje em tons laranja-desbotados) parece meio assustado e faz uma cara de quem não entendeu. Eu me intrometo para explicar novamente a história para o auxiliar do barqueiro. Aparentemente meio nervoso, ele hesita ao repetir em linhas gerais o que havia me contado em off. Tenente Araújo volta-se para mim novamente, reflexivo. O sorriso peculiar ainda está em seu rosto. Ele dispara:
- O passado morreu.
O homem que não gosta de falar das emoções negativas do passado passa então a contar sobre sua embarcação. “Eu sou microempreendedor individual”, relata com tom de orgulho na voz tranquila de quem vive com a sola dos pés em constante contato com a areia. Ele próprio faz a manutenção do barco, desde a pintura de casco para evitar apodrecimento da madeira à calafetagem (vedagem) de vazamentos. Conta que foi aprendendo o ofício com a observação do trabalho das pessoas que chamava para fazer manutenção. Hoje em dia, o trabalho é feito diariamente, pela manhã, ou até mesmo à noite.
Os barcos, por sua vez, têm nomes de mulheres: Marta e Selma. São nomes entalhados na madeira, que demanda esforço e muita burocracia para trocar. “E tá bom, acho um nome legal, Marta e Selma”, revela, ao dizer que os nomes são de pessoas da família do antigo dono.
Os barcos possuem CNPJ e todos os requisitos legais para o pleno funcionamento, os amigos de navegação contam. Seu Araújo sai para buscar documentos e retorna com certificados de registro dos barcos e cadernetas de habilitação que o permitem legalmente pilotá-los.
Foi no Pelotão Ecológico da Polícia Militar onde seu Araújo teve o primeiro contato com embarcação. Ali, foi necessário fazer um curso na Marinha Mercante para aprender a pilotar. Fez um curso de Marinheiro Regional, depois de Arrais Amador, seguido por Condutor de Embarcação de Estado no Serviço Público, e por último, conta, foi Aquaviário nível 3.
Existe ainda um bote, livre para quem desejar navegar o faça na condição de recolher todo material não pertencente ao Rio, como garrafas PET e outros. Seu Araújo diz que num futuro próximo, o Selma fará o passeio da ponte Sebastião de Abreu até o Caça e Pesca. Para isso, algumas coisas precisam ser melhoradas.
Foto: Emanel Silva
Os passeios no Rio Cocó são feitos no barco Marta (foto), que comporta até 18 passageiros.
O homem natural de Patos, na Paraíba, tem uma vida comum longe do Rio. Casado, ele quer que a filha Mariana, 17, que pretende cursar Biologia, estude Turismo. Pergunto se a escolha da filha por Biologia também não tem influência dele.
- Não sei, pode ser. Ela vê meu trabalho aqui, né?
A relação do tenente com o Rio Cocó é bela, o que o torna um guardião daquela que mais sofre as consequências da ação humana: a Natureza. E ajudar quem tanto ajuda o homem é sempre uma atitude nobre.
SERVIÇO
Onde: No trecho entre as pontes das avenidas Sebastião de Abreu e Santana Júnior
(embarque próximo à Sebastião de Abreu)
Quando: Todos os dias da semana. Necessário agendamento, exceto aos finais de semana.
Preço: Ligar para 9 8527-8216; Grupo de alunos de escola pública (gratuito), ligar para 3234-3574